Nota prévia
Este texto funciona como uma leitura ampla da prática artística de Maimuna Adam (Maputo, 1984).
Ao mesmo tempo é uma tentativa de interpelação/interacção com a artista, provocando-a para dentro de um processo de crítica e análise do seu próprio trabalho.
Resulta de conversas com Maimuna, de a ouvir e ler, de ver os seus trabalhos, e da admissão de que o que fazemos e escrevemos são fases de um processo em viagem, que admite transições, incertezas e mutações.
O interesse que pode ter uma análise deste corpo de trabalho reside em dois aspectos: 1) – na capacidade de Maimuna dar resposta aos projectos que lhe são propostos, e nesse processo definir um conjunto de questões que lhe parecem ser pertinentes desenvolver; 2) – na qualidade plástica que desenvolve ao longo dos anos de estudo, associada à construção de uma perspectiva do papel da sua prática para si, e por relação com a prática artística dos outros. Em suma, analisar o que pode ser considerado a fase embrionária de uma consciência de identidade enquanto artista.
Partirei de algumas das suas obras desenvolvidas nesse periodo para me prolongar na sua relação com as agora apresentadas em “Ocupações temporárias 20.10”.
- “The Travelling dress” (2008), serve para testar a ideia de que a transitoriedade construída por Maimuna entre a pintura e a fotografia se relaciona com questões de permeabilidade e transmutação, talvez até mesmo da possível coexistência de múltiplas identidades; assim como para apresentar e aprofundar a relação de Maimuna com a sua identidade, história, memórias pessoais e passado nacional.
O vestido que surge nesta obra é a recriação, através de memórias indirectas, de um vestido que foi de Maimuna quando criança. Na memória dos que viram Maimuna partir para a Suécia com sua familia, ficou uma criança que não queria embarcar no avião sem levar o seu vestido moçambicano.
Maimuna tornou o vestido um símbolo de viagem, de passado que não alcança mas que lhe pertence.
O conhecimento indirecto do passado, e sobretudo de eventos históricos de Moçambique (colonialismo, independência, guerra civil) é para a artista problemático, e sucessivamente incorporado como modus operandis de grande parte da sua prática artística. Acaba por lidar com a questão da “ignorância” utilizando-se, ao seu corpo, às suas memórias e ao que lhe pertence (o que lhe é mais íntimo e reconhecido, e que auto-retrata, fotografa, desenha e filma), numa tentativa de criar vínculos com questões que, apesar de distantes, também são dela.
- Ilustrações do conto de Mia Couto “O embondeiro que sonhava pássaros”, em que desenha e pinta sobre uma harmónica de folhas de papel, retirando à narrativa o seu lado ordenado. Sem numeração de páginas acabamos por fazer escolhas aleatórias de imagens, criando a nossa ordem para o conto. A narrativa solta-se do autor e das palavras, e agora somente vive enquanto imagem.
Também interessante neste trabalho é a descoberta, por Maimuna, de que em contextos diferentes os textos/obras de arte podem ganhar diferentes significados. Quando leu este conto em inglês, finalmente percebeu porque apelidam o escritor de magic-realist. De facto, em inglês Maimuna leu esse realismo fantástico; o que não acontece quando lê Mia Couto em português de Moçambique, porque o mundo que ele descreve e as histórias que conta são, nesta língua, parte da realidade quotidiana moçambicana. Em inglês deixam de o ser...
Proponho um diálogo entre estas duas peça e os desenhos e vídeo que estão a ser realizados para o projecto “Ocupações Temporários 20.10”, que Maimuna irá apresentar na Livraria Minerva, Maputo.
No vídeo vemos folhas de 'papel' a serem mexidas por mãos. O 'papel' acaba por se tornar autonómo das mãos e através da acção da encadernação vai-se auto-construindo em livro. Se no início vemos mãos e excertos de braços a manusear o papel, uma progressão de transparências leva-nos a presenciar o 'papel' como “ser autónomo” de qualquer manufactor, da palavra e do escritor.
Na obra “O embondeiro que sonhava pássaros” tinhamos uma desconstrução da ideia de narrativa, neste vídeo presenciamos, entre outras coisas, o questionamento da ideia de autoria e autonomia da obra de arte e processo artístico.
Sobre os desenhos para a Minerva, Maimuna escreveu: “As imagens tratam de narrativas que propositadamente podem ser lidas separadamente ou em conjunto – são as ideias de mistura de realidades e a intertextualidade que se dá entre livro, leitor, autor e outros livros; a ideia de juntar histórias que são paralelas, opostas, em conflito, etc. O trabalho questiona o 'papel' em suas diferentes formas: o conteúdo dos livros (letras/tinta sobre papel), o papel (reciclado) como elemento frágil e também como elemento com 'passado' que junta varias 'histórias', e claro, o questionamento do papel que os livros têm na (minha) história...” (email, Fevereiro de 2010).
Podemos encontrar aqui a confluência de questões que têm vindo a interessar a artista: narrativas, mistura de realidades e histórias conflituosas, o passado e a sua história/existência pessoal. Estas são temáticas que pertencem à artista, a Maputo e ao mundo. São, desse modo, temas internacionais, globais e locais, do foro do intímo e do privado, do partilhado e do público. Através de Maimuna ganham mais um momento de reflexão, filtrado por experiências pessoais e pelo intimismo respeitante ao sujeito, e constituem-se na potência autoral da obra desta jovem artista.
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